segunda-feira, 15 de novembro de 2010

A Pobreza Enquanto Negócio

Valter da Mata*
Assistir os 104 minutos do filme de Sérgio Bianchi, Quanto vale ou é por quilo? (2005), não é uma das tarefas mais agradáveis. Livre adaptação do conto “Pai Contra Mãe” , de Machado de Assis e entrecortado com pequenas crônicas sobre a escravidão, extraídas dos autos do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, o filme expõe as mazelas e contradições de um país que ainda procura seu caminho para seu desenvolvimento ético e moral.
Num tom semi-documental, o filme nos introduz ao universo nada glamouroso das atividades das Organizações Não Governamentais (ONGs). O que fica explícito é que a pobreza e a miséria são tratadas como um negócio muito lucrativo e a exploração dessas se revela num jogo cruel, onde o que vale é o quanto se ganha. No longa vemos como os projetos sociais servem de pretexto para toda sorte de falcatruas e negociatas como lavagem de dinheiro, desvio de verbas, enriquecimento ilícito, sonegação fiscal, entre outras.

Fica difícil rotular mocinhos e bandidos nesse caldeirão caótico. Na melhor linha ‘farinha pouca, meu pirão primeiro’, os personagens mostram uma completa falta de ética e desde que eles possam levar vantagem em algo, tudo é válido e justificável. Ricos e pobres, homens e mulheres, negros e brancos, todos ajudam a compor um quadro grotesco de injustiça e mesquinharia.

As relações raciais aqui são retratadas de forma interessante, numa comparação entre o Brasil Império e o Brasil Conteporâneo. As associações são diretas, sem direito a elaborações mais sofisticadas. A senzala vira favela e periferia e os escravos agora se chamam assalariados ou desempregados, sem direito a ração diária. Quadro curioso é o retrato do Capitão do Mato, enquanto no Brasil Império, este personagem ganhava a vida a perseguir e capturar negros escravizados fugidos, nos tempos atuais continuam a sujar suas mãos de sangue, fazendo o trabalho sujo para os senhores de engenho, metamorfeados em polícia e grupos de extermínio.

A exploração da pobreza é aqui apresentada, num discurso cínico justificador de algo que gera emprego e renda. As ONGs são dirigidas por pessoas que tem asco do público alvo, não se importando com as reais necessidades desses grupos oprimidos. Na verdade esses grupos são vistos como peças descartáveis, engrenagens de uma máquina que as devoram. Os projetos são pensados fora de qualquer necessidade real da comunidade, são decididos em gabinetes e o critério básico é quanto cada participantes do planejamento, assim como como e quanto sua curriola irá lucrar com a execução do projeto.

Programas de inclusão digital que só ensinam os jovens a lidar com orkut e msn, programas de cunho religioso sem o menor respaldo científico para combate ao vício de drogas, cursos de artesanato, dança, instrumentos musicais e toda sorte de “capacitação profissional” são oferecidas sem a menor participação daqueles que são o público alvo. Tudo isso com o consentimento do governo, que injeta milhões de reais nesses programas e os repassam às ONGs gerirem esses recursos.

Para quem não entra no esquemão das negociatas e atividades ilícitas, só restam as migalhas. E por falar de migalha, o quão é chocante a cena na qual um grupo de manifestantes indignados com a corrupção de um gestor dessas ONGs, cala-se imediatamente quando são convidados a participar de uma festa em homenagem ao própio corrupto. A suntuosidade do lugar emudece todo o grupo, que mesmo deslocado por não estarem trajados à rigot, não perde a oportunidade de desfrutar a ocasião nababesca.

No filme vemos uma jovem pobre da periferia, em avançado estado de gravidez, solicitando ao seu companheiro desempregado que o mesmo compre uma tintura para o seu cabelo enquanto folheia uma revista de celebridades. Para logo depois outro personagem afirmar que o desejo de consumo de todas as classes sociais pe determinado pela classe A. Nesse país você é o que você consome e o jogo midiático nos impele a buscar a qualquer custo os nossos 15 minutos de fama.

O quadro pintado é pessimista, Bianchi não nos mostra luz no fim do túnel. E apesar do filme terminar com uma celebração de uma família pobre, saímos com a incômoda sensação de que não há o que comemorar. O país expõe suas veias anti-éticas, onde ser honesto é sinônimo de ser otário. Sim, esse é o retrato do Brasil, talvez cronicamente inviável, mas aí já é uma outra história.
 
Mata, Valter (2008) A Pobreza enquanto Negócio Presente! revista de educação / Centro de Estudos e Assessoria Pedagódica. Ano 16, n.4, (dez/2008) Salvador:CEAP,n.63.
 
* Valter da Mata é mestrando do Programa de Pós-graduação em Pisicologia da Universidade Federal da Bahia, docente do Programa de Metodologia dos Estudos Africanos e Afro-brasileiros da Famettig e Vice-presidente do Conselho Regional de Psicologia Região 03 – Bahia / Sergipe.
 

Um comentário:

  1. Lembro que quando essa resenha foi publicada eu estava na condição de mestrando e de vice-presidente do CRP 03.

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