quarta-feira, 24 de novembro de 2010

No Novembro Negro, os brancos da vez...

Por Carlos Barros


Neste Novembro Negro, vêm de Sampa os brancos da vez...
O CQC é um programa da Band que tem assumido o papel de porta-voz do jornalismo humorístico moderninho na TV brasileira.
Seus apresentadores mostram, a cada segunda-feira, os acontecimentos do Brasil e do mundo pela lente de suas possíveis - e bem parciais - aulas de semiótica aplicada numa nuance bem particularizada...
Esta semana, uma premiação sobre personalidades negras em São Paulo foi motivo de uma matéria pra lá de interessante: Rafael Cortez (cujo sarcasmo constante nos desvia de observar características suas mais relevantes) adentrou o Teatro Municipal para flagrar e conversar com os envolvidos (quase todos negros) na festa.
Izabel Filardis, Tony Garrido, Milton Nascimento (o homenageado) foram clicados pela lente do CQC, cuja coloração é clara, clara, nada comparável à aura da Palco de Gil.
No estúdio, Marco Luque (curiosamente o menos branco de todos: seus cachinhos à la Carlos Barros não negam, mulata) responde à indagação de Marcelo Tas sobre o fato de Lenine, Fafá de Bélem e Jorge Vercilo (não negros) estarem naquele espaço teoricamente empretecido.
"Ora, os brancos precisam servir o café e lavar os banheiros, Marcelo..." é a incrível resposta do rapazola...
É Luque: não seria nada mal ver uma loura de olhos azuis lavar o banheiro com a mesma dignidade que o fazem tantos negros e mestiços pelo Brasil afora.
Receber uma xícara de café bem forte das mãos de uma Carelli, Cortez ou Scwarczman não seria de mal tom: as mãos brancas entregando aos negros (tantos Silva, Souza e da Conceição) serviços que há tanto tempo são realizados por mãos negras.
De fato, não seria ruim, mas não se trata disso, querido Luque: o evento não representou uma inversão de valores sociais em que os negros passariam à condição de senhores de engenho reinventando Gilberto Freyre.
O evento celebra a cada ano personalidades que contribuem com a causa da negritude (acho que o Luque nem sabe o que é isso) no Brasil, com  a necessidade de que não achemos natural que apenas negros lavem nossas privadas...
O evento contou com Lenine - o reinventor do violão percussivo e contemporâneo, no Brasil -, Jorge Vercilo - cujos belos agudos são produzidos por uma laringe mestiça e de cabelos originalmente encaracolados e com Fafá de Bélem, cuja obra está inevitavelmente associada a causas importantes deste país, como demonstra sua inserção nos debates sobre as Diretas Já.
Estes artistas não foram chamados para lavar a louça dos negros da elite.
Estes artistas não se prestam à piada infame do CQC sobre os papéis sociais no Brasil.
Ele, Marco Luque, mestiço recorrentemente tratado como motivo de piada pelos anéis de seus cabelos (outrora enaltecidos por Roberto Carlos ao homenagear Caetano) e peça chave na configuração do programa televisivo, precisa concordar que os negros e os brancos e os mestiços e os cafuzos e os índios e os viados e as sapatas, etc vivem numa realidade caracterizada pela emergência do diverso, leia-se plural.
É tão importante ter Milton Nascimento no palco, quanto Milton Santos na Geografia; Lázaro Ramos nas telas quanto Luislinda Valois no Direito.
Seria importante, também, ter menos melanina lavando nossas sujeiras?
Essa pegou você, não é Marco Luque?
E como bem me lembrou Marlon Marcos em mais uma de nossas conversas sobre o mundo: vamos citar Gilberto Gil num momento de lucidez ácida em 1985:

A mão da limpeza

Gilberto Gil

O branco inventou que o negro
Quando não suja na entrada
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Vai sujar na saída, ê
Imagina só
Que mentira danada, ê

Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o negro penava, ê

Mesmo depois de abolida a escravidão
Negra é a mão
De quem faz a limpeza
Lavando a roupa encardida, esfregando o chão
Negra é a mão
É a mão da pureza

Negra é a vida consumida ao pé do fogão
Negra é a mão
Nos preparando a mesa
Limpando as manchas do mundo com água e sabão
Negra é a mão
De imaculada nobreza

Na verdade a mão escrava
Passava a vida limpando
O que o branco sujava, ê
Imagina só
O que o branco sujava, ê
Imagina só
Eta branco sujão!

A canção está no disco Raça Humana.
Podemos ouvi-la em http://www.gilbertogil.com.br/
Texto originalmente publicado em http://www.cantigavemdoceu.blogspot.com/

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