quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Racismo no Brasil pela voz do embaixador de Cabo Verde

Por: Danniel Pereira

Fonte: http://pambazuka.org/pt/category/comment/69773


Neste artigo, o embaixador de Cabo Verde no Brasil, Daniel Pereira, conta a discriminação que a filha Débora passa no colégio de Brasília. O caso foi usado como exemplo num artigo publicado no Correio Braziliense a propósito do lançamento da Campanha Nacional sobre o Impacto do Racismo na Infância e na Adolescência no Brasil. Deixemos-lhe o texto aqui, na íntegra.

O embaixador de Cabo Verde no Brasil, Daniel Pereira, conta a discriminação que a filha Débora passa no colégio de Brasília. O caso foi usado como exemplo num artigo publicado no Correio Braziliense a propósito do lançamento da Campanha Nacional sobre o Impacto do Racismo na Infância e na Adolescência no Brasil. Deixemos-lhe o texto aqui, na íntegra.
O embaixador de Cabo Verde no Brasil, Daniel Pereira, descreve o espanto que sentiu quando soube da discriminação que sua filha, Débora, sofre na escola. Duplo preconceito, por ser negra e por ser portuguesa. A menina também revela o que passa e o que sente no dia a dia num colégio de elite de Brasília.

É bem cedo que nascem o racista e a vítima do racismo. É na infância que a criança aprende com os adultos ou com outras crianças a discriminar o ser humano pela cor da pele. Para tentar ajudar a frear o surgimento de novas gerações de brasileiros hostis a brasileiros da raça negra, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) lança, na próxima segunda-feira, em Brasília, a Campanha Nacional sobre o Impacto do Racismo na Infância e na Adolescência.
“As estatísticas apontam disparidades raciais que atingem crianças negras e indígenas que estão um pouco à margem do acesso às políticas públicas”, diz Helena Oliveira, responsável pelo programa de proteção à infância do Unicef. “A discriminação racial tem gerado graves efeitos na vida dessas crianças.” Especialmente, informa Helena, em meninos e meninas que vivem na periferia dos grandes centros urbanos, Brasília incluída, na Região Amazônica e no semiárido nordestino.
Os números são retumbantes: são 31 milhões de brasileirinhos negros e 150 mil de brasileirinhos indígenas. Desse total, 26 milhões são pobres e, entre esses, 17 milhões são negros. Há mais números impactantes: das 530 mil crianças de 7 a 14 anos fora da escola, 330 são negras.

O Índice de Homicídio na Adolescência, estudo do Unicef, revela que há 2,6 mais chances de um jovem negro ser assassinado do que um branco. Dados que sustentaram a necessidade dessa campanha que pretende “mobilizar toda a sociedade para alertá-la sobre o impacto do racismo na infância”, afirma Helena Oliveira.

A Unicef quer sensibilizar formadores de opinião, formuladores de políticas públicas, gestores privados, famílias, comunidades, escolas, universidades. “A responsabilidade dos adultos é muito grande, não podemos permitir que o racismo continue a se reproduzir no país”, alerta Helena. A campanha vai ser reproduzida em várias mídias, em folderes, camisetas e vai sugerir “10 maneiras de contribuir para uma infância sem racismo”.

O embaixador de Cabo Verde, Daniel Pereira, conta abaixo o espanto que sentiu quando soube da discriminação que sua filha, Débora, sofre na escola. Duplo preconceito, por ser negra e por ser portuguesa. A menina também revela o que passa e o que sente no dia a dia num colégio de elite de Brasília.

“O mundo de hoje é mestiço” Daniel Pereira, embaixador de Cabo Verde. Tem 59 anos, é historiador e ensaísta, escreveu diversos livros sobre a história de seu país. Casado, três filhas. Mora no Lago Sul.
Eu, como cabo-verdiano, não sei lidar com o racismo, porque em Cabo Verde nós ultrapassamos isso há muito tempo. Quando sou confrontado, no Brasil, com essa situação, me sinto um pouco constrangido. Nunca havia me deparado com essa situação aqui, mas minha filha mais nova já viveu essa realidade na escola. Ela tem 15 anos. Nós já vivemos na Holanda, em Angola, em Cabo Verde, em Portugal e ela nunca se deparou com o problema do racismo. Foi preciso chegar ao Brasil, paradoxalmente um país mestiço, para que isso acontecesse.

Ela estuda numa escola de elite e no dia a dia enfrenta situações as mais bizarras: anedotas, brincadeiras de mau gosto, coisas sem pé nem cabeça. Para ela, é constrangedor.

Quando ela me contou o que estava acontecendo, sugeri: ‘Diz aos teus colegas que nem os negros nem os portugueses deixaram descendentes aqui. Eles eram povos estéreis.’ Depois disso, as coisas abrandaram um pouco, mas volta e meia lá vem a questão novamente. Como a maior parte dos brasileiros é descendente de portugueses e africanos, todos têm uma família de portugueses ou uma família de africanos mesmo que não exista uma marca exterior dessa ascendência. É um pouco fora de propósito o racismo no Brasil. E o preconceito é também contra o português. Minha filha é filha de portuguesa, e é cabo-verdiana. Portanto, é africana também. Então ela ouve anedotas sobre portugueses e africanos. As pessoas não percebem que agindo assim estão satirizando a própria cara, estão matando a própria autoestima. Há qualquer coisa que não está funcionando bem. Muito a refletir, a ultrapassar.

Devo dizer que me sinto em casa no Brasil. É um paradoxo. Sou estrangeiro, estou fora do meu país e ao mesmo tempo me sinto em casa. A cultura que me rodeia é a minha cultura, a língua que eu falo é a minha língua, com mais ou menos sotaque.
Existe uma empatia de fundo histórico entre Cabo Verde e o Brasil. Muitos não sabem que aquilo que aconteceu no Brasil a partir de 1500 foi antecipado em Cabo Verde 40 anos. Cabo Verde foi descoberto em 1460. As experiências que foram feitas lá foram transplantadas para o Brasil.

Do ponto de vista político, com as capitanias hereditárias, por exemplo. A cana de açúcar foi introduzida no Brasil a partir de Cabo Verde, e não veio só a cana, vieram os técnicos e veio a tecnologia.

Muitos escravos que vieram de Cabo Verde para o Brasil vieram para trabalhar no canavial. A mestiçagem foi iniciada em Cabo Verde e foi transplantada para aqui. O coco, as vacas, os burros, o inhame foram introduzidos no Brasil a partir de Cabo Verde. É um conjunto de elementos que fizeram a base da matriz brasileira, que veio de Cabo Verde, da Guiné, do Senegal.
A relação histórica entre o Brasil e Cabo Verde é muito antiga. Costumo dizer que antes de ser já era, porque quando Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil passou primeiro por Cabo Verde. Porque Cabo Verde era um ponto de passagem obrigatória da navegação. Todos os grandes navegadores do mundo passaram por Cabo Verde. Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Cristovão Colombo, tamanha a importância que Cabo Verde teve no contexto do Atlântico, pelo menos até o século 17. Enquanto a navegação foi feita com a necessidade de escalas, Cabo Verde pertencia a todos os mapas. Quando a navegação pôde ser feita de costa a costa, Cabo Verde desapareceu do mapa.

A minha função aqui no Brasil, desde que cheguei, foi fundamentalmente dizer aos brasileiros: A África que vocês imaginam não existe. Não são só macacos, não são só leões, não é só safári. Estamos a falar de uma África em desenvolvimento. Na África existem quatro Nobel de Literatura. Não vejam a África como a selva. Esta África está em vias de desaparecer.
O mundo de hoje é mestiço e tende cada vez mais para essa mistura. É uma mistura tão grande que não vale a pena as pessoas ficarem se preocupando com o fato de ser branco ou negro. Existe a raça humana.

Sabe por que os cabo-verdianos não têm problema com a cor da pele? Um amigo que já morreu dizia que o cabo-verdiano era rico sem dinheiro e branco sem cor. Porque nós estávamos numa sociedade escravocrata formada por gente que durante muito tempo teve algum dinheiro. Depois que Cabo Verde empobreceu, o cabo-verdiano ficou com mania de rico. Então, rico sem dinheiro e branco sem cor por quê? Porque ele não aceita que você o defina pela cor da pele. Por uma questão de dignidade humana. As pessoas têm um nome e devem ser julgadas pelo seu nome, pela sua maneira de ser e não pelo aspecto externo de sua coloração cutânea.

Em Cabo Verde, como a mistura é grande, as pessoas são muito pobres e a pobreza horizontaliza — enquanto a riqueza verticaliza — as pessoas estão muito próximas umas das outras. É uma mistura tão grande que na mesma família você pode ter um irmão branco e pode ter outro irmão negro. Não tem como ser racista. Como é que você vai ser racista com seu próprio irmão?
Débora Pereira

Nasci na Holanda, mas sou cabo-verdiana e portuguesa. Estudo em escola de gente com bom nível econômico. No Brasil, tem um problema. Tem racismo, pelo menos na minha escola tem bastante. Os alunos falam que os negros são burros. A minha escola é muito boa, aprendo bastante e sei que ela vai me ajudar no meu futuro com certeza. Só que tem esse problema, e eu não sei se elas falam por mal, mas parece que sim. Me sinto ofendida porque meu pai não é branco. É estranho ter racismo no Brasil. Porque aqui é tudo misturado. Ser racista é xingar a si mesmo. Parece que o brasileiro não aceita que tem descendência negra, simplesmente não aceita. Já falei que não gosto que falem de negros, mas eles falam: ‘Ah, eu estou brincando’, mas sei que não estão.Eu sou umas das alunas de pele mais escura na minha sala, mas lá não tem ninguém muito branco, a não ser uma americana. O resto é tudo brasileiro.

E tem também o preconceito contra o português. O povo brasileiro tem algum problema com os portugueses. Eles acham que português é burro. E eles não falam só de mim, é do negro em geral. E eu sempre digo: ‘Para de falar isso’.Toda a família do meu pai tem ascendência africana. Antes eu ficava bem aborrecida, de berrar com a pessoa, mas agora só falo ‘não diz isso que eu não gosto’.

Adoro os brasileiros. Os portugueses são bem fechados, são mal-humorados e os brasileiros parecem ser sempre joviais, estão sempre sorrindo. Nos Estados Unidos, sou considerada negra. Então sou negra, tanto faz. Não tem problema. Mas eu não gostaria de definir a minha cor, porque minha mãe é branca e meu pai é negro. Então, eu sou o quê? A identidade não precisa de definição de cor. Já foi provado cientificamente que não existe raça. Tanto faz a cor da pele para mim, se a pessoa for azul, tudo bem. Não tenho cor.

Eu adoro as pessoas da minha escola. Tirando esse pequeno problema, o resto tudo bem.

*Danniel Pereira é embaixador de Cabo Verde no Brasil

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